E então já cansado, olha para trás e observa o que passou. Já não pode voltar. Tampouco mudar. Passado, esse é o verbo. Volta seu olhar para o que está por vir. Nebuloso, escuridão e sombras. Não consegue distinguir, não consegue precisar. Mas sabe que precisa continuar. Curvado com o peso dos anos, das decisões erradas, das palavras não ditas e daquelas que deveriam ficar nas entranhas de seu ser, ele tem que continuar. Mesmo sem querer, o próximo passo precisa ser dado. Levanta seu pé direito, descalço e decidido, lança-se na escuridão. Mas, o pé não encontra apoio e entre a surpresa e a constatação, fecha os olhos. É chegado o fim. E ele cai, nas sombras sente seu corpo no ar, caindo e caindo. Não encosta em nada, não sente nada, apenas o hálito gélido da sombra nebulosa de seu futuro a soprar-lhe o rosto. De repente encontra o chão. Permanece lá, imóvel, olhos fixos em algum lugar que ficou para trás. Estirado no seu destino, não sente mais aquele hálito que o acompanhou em sua vertiginosa descida, mas sim uma brisa quente a soprar-lhe a face, cheiro de terra recém molhada, e longe, muito longe dali, consegue distinguir o som de água a correr. Entre a vontade de ficar onde está e se entregar por completo, sem entender o que aconteceu e porque ainda está a respirar, sente sede. Parece-lhe que nem toda a água do mundo poderá saciar-lhe. E com um suspiro, levanta-se lentamente. O peso que antes carregava agora aliado às dores da queda fazem com que se arqueie ainda mais. Primeiro um pé, depois o outro, arrastando-se pelo que se poderia descrever de chão de terra batida, ele tenta se locomover. Mais adiante uma luz começa a surgir no céu, antes enegrecido. E com os primeiros raios de sol ele segue adiante, em busca daquilo que pode mudar seu estado de torpor, esperando que em companhia ao sol venha também a certeza de um recomeço.
2 comentários:
Recomeçar sempre, olhando pra frente!
Beijo
que lindo conto...
O lixo
Encontram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a primeira vez que se falam.
- Bom dia...
- Bom dia.
- A senhora é do 610.
- E o senhor do 612
- É.
- Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente...
- Pois é...
- Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo...
- O meu quê?
- O seu lixo.
- Ah...
- Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser pequena...
- Na verdade sou só eu.
- Mmmm. Notei também que o senhor usa muito comida em lata.
- É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei cozinhar...
- Entendo.
- A senhora também...
- Me chame de você.
- Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns restos de comida em seu lixo. Champignons, coisas assim...
- É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas, como moro sozinha, às vezes sobra...
- A senhora... Você não tem família?
- Tenho, mas não aqui.
- No Espírito Santo.
- Como é que você sabe?
- Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo.
- É. Mamãe escreve todas as semanas.
- Ela é professora?
- Isso é incrível! Como foi que você adivinhou?
- Pela letra no envelope. Achei que era letra de professora.
- O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo.
- Pois é...
- No outro dia tinha um envelope de telegrama amassado.
- É.
- Más notícias?
- Meu pai. Morreu.
- Sinto muito.
- Ele já estava bem velhinho. Lá no Sul. Há tempos não nos víamos.
- Foi por isso que você recomeçou a fumar?
- Como é que você sabe?
- De um dia para o outro começaram a aparecer carteiras de cigarro amassadas no seu lixo.
- É verdade. Mas consegui parar outra vez.
- Eu, graças a Deus, nunca fumei.
- Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos de comprimido no seu lixo...
- Tranqüilizantes. Foi uma fase. Já passou.
- Você brigou com o namorado, certo?
- Isso você também descobriu no lixo?
- Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho, jogado fora. Depois, muito lenço de papel.
- É, chorei bastante, mas já passou.
- Mas hoje ainda tem uns lencinhos...
- É que eu estou com um pouco de coriza.
- Ah.
- Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu lixo.
- É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é.
- Namorada?
- Não.
- Mas há uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. Até bonitinha.
- Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.
- Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer que ela volte.
- Você já está analisando o meu lixo!
- Não posso negar que o seu lixo me interessou.
- Engraçado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria de conhecê-la. Acho que foi a poesia.
- Não! Você viu meus poemas?
- Vi e gostei muito.
- Mas são muito ruins!
- Se você achasse eles ruins mesmo, teria rasgado. Eles só estavam dobrados.
- Se eu soubesse que você ia ler...
- Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando. Se bem que, não sei: o lixo da pessoa ainda é propriedade dela?
- Acho que não. Lixo é domínio público.
- Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público. O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso?
- Bom, aí você já está indo fundo demais no lixo. Acho que...
- Ontem, no seu lixo...
- O quê?
- Me enganei, ou eram cascas de camarão?
- Acertou. Comprei uns camarões graúdos e descasquei.
- Eu adoro camarão.
- Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente pode...
- Jantar juntos?
- É.
- Não quero dar trabalho.
- Trabalho nenhum.
- Vai sujar a sua cozinha?
- Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos fora.
- No seu lixo ou no meu?
Fonte: Disponível em http://literal.terra.com.br/verissimo/porelemesmo/porelemesmo_lixo.shtml?porelemesmo
Originalmente publicada em O Analista de Bagé.
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