Tempo

Ela passou em frente ao espelho, peça sem a qual ela viveria muito bem. Armário sim, cadeira sim, cama sim, mas o espelho era desnecessário. Não consegue mais reconhecer aquela que ele lhe mostra. A pele não tem mais o vigor de outrora, marcas profundas lhe rasgam a face. Os olhos são os mesmos, de um profundo azul, mas o brilho a muito se apagou. Se procurar bem lá no fundo, talvez ainda se encontre uma pequena faísca tentando se espalhar, mas já sem forças tenta apenas se manter ali, presente. Os cabelos.... esses o olhar evita encontrar, já “cañados” denunciam o tempo que se passou, ou que se perdeu.

É como um relógio que bate sem parar, tic, tac, tic, tac... Levando consigo toda qualquer vontade. Tirando todo o vigor que um dia tivera. Deixando apenas a vontade de voltar no tempo, mudar tudo, recomeçar. Mas ele não para nunca e a certeza avassaladora a faz se odiar e desviar o olhar de seu reflexo.

Por uns instantes, respira fundo e fecha os olhos. Vontade de voltar, sem coragem de recomeçar. Vontade de se atirar em terras desconhecidas, sem o entusiasmo de fazer as malas. Vontade de limpar a poeira profunda que o tempo deixou, sem coragem de começar.

Senta-se e olha pela janela. Lá fora o sol não brilha, os pássaros não cantam, as crianças não correm. Uma tempestade se anuncia e todos se recolhem, os primeiros pingos se precipitam contra sua janela, um, dois, três, muitos pingos e trovões.... ventania. Ela sabe que lá fora tudo vai passar, a chuva vai estiar, o vento vai parar de soprar, os pássaros voltarão a cantar e as crianças vão correr excitadas procurando as poças de lamas para brincar, a vida estará lá, se anunciando em cada ação, por menor que seja.

Mas tudo se passará do outro lado da vidraça.

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